Pedro Motta Pinto Coelho
REFEIÇÃO A SÓS
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6 min readDec 19, 2020

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A REFEIÇÃO A SÓS: MUITO PRAZER-PARTE XVI-FAKE NEWS E O DILEMA DA SIMULTANEIDADE

Diz a filosofia da linguagem, de Locke a Saussure — e o sábio Millôr Fernandes também — que nosso pensamento é livre. Pensamos simultaneamente, mas quando falamos, falamos uma coisa de cada vez. A linguagem é linear, como sabemos da linguística. Talvez só os poetas consigam escapar a essa linearidade da linguagem.

Acontece que em qualquer circunstância dos tempos contemporâneos — quem sabe se com o «novo normal» pós Covid 19 não será diferente — quando rapidez e eficiência costumam ser categorias elevadas quase que ao nível de valores absolutos, ganha espaço e força o contraste entre o menosprezo pelos caminhos lineares da vida, pela eficiência linear, um passo de cada vez, e o apreço pelas ações e soluções simultâneas, pela eficiência simultânea, pelas emoções complexas.

A montanha nevada em dia de sol translúcido, esquiadores descem em curvas suaves. Bela imagem. Servirá bem a quem come só, ao aventurar-se em seu mundo interior. Deslizará suavemente em montanhas de ideias carregadas de ar puro, como o que respira o esquiador. Será assim tanto para o mendigo, com sua côdea de pão velho, como para o marmiteiro ou para o gourmet, não importa, desde que se disponham a ultrapassar a simples relação do alimento com a percepção de matar a fome.

Há obstáculos, contudo, nesse caminho. O esquiador se desvia de pedras, fendas, árvores, e até de outros esquiadores. A condição de comer a sós não impede que a pessoa traga para a mesa ou o para o banco da praça seus problemas e angústias, mas pode facilitar contorná-los e mesmo resolvê-los. Como?

Com a mesma fórmula que conjuga inspiração e técnica que serve ao esquiador para contornar ou resolver seus obstáculos ao descer na pista de neve.

Panaceia? Estamos sempre no campo modesto, em que a refeição individual, solitária, pode abrir-se a reflexões alegres, construtivas, prazerosas, enfim.

Questões diversas. Quem quiser, fale também de situações delicadas, de angústias, porque não? Pois há algumas delas, insuspeitas, mais próximas à situação de quem come só, e que, por aí, podem ajudar na solução ou encaminhamento de outros problemas mais concretos.

Dentre essas questões, encontra-se o dilema entre simultaneidade e linearidade.

Trata-se de um falso dilema, fake news, para quem faz a refeição a sós.

Esse tal dilemazinho está por aí, entre nós. A crença cada vez mais se impõe, sorrateira, corolária do mundo virtual: não basta ser eficiente em cada tarefa ou em cada ação, uma de cada vez; convém ser eficiente simultaneamente em tarefas ou ações diversas. Esse dilema faz parte de nossa natureza, e é um hábito com tradições sociais, culturais, até — sobretudo — econômicas. . Aquela sensação de «ver quem consegue assobiar e fazer xixi ao mesmo tempo». Dos tempos de criança, mas que atravessa idades. Fascina ver o mestre de xadrez que joga ao mesmo tempo contra vários adversários, em partidas separadas.

Os mágicos, ilusionistas e prestidigitadores exploram a noção da simultaneidade com a leveza de brancas nuvens. Como o artista de circo que mantém, com apenas duas mãos, várias bolas no ar. Ou o pianista capaz de tocar dezenas de notas ao mesmo tempo: a ideia de harmonia, embutida em toda a música tonal, mesmo numa melodia sem acompanhamento, implica simultaneidade. O A dança e os bailarinos, seguem por essa mesma via, ainda que possa haver obstáculos por vezes: dançarinos, pelo menos no balé clássico, não cantam. E pergunte à cantora que faz o papel protagonista na ópera Carmen, de Bizet, sobre a dificuldade de cantar e dançar ao mesmo tempo, equilibrando-se, com castanholas e o copo de manzanilla em cima de uma mesa de bar, a «Seguidilla» do segundo ato.

A simultaneidade parece estar por todo lado.

As armas de fogo fazem barulho, explodem e matam ao mesmo tempo. Por pouca familiaridade e muito respeito e admiração à sua construção, me escuso de entrar nos caminhos da teoria quântica, e os princípios da incerteza e da simultaneidade (o elétron pode estar em qualquer lugar quando, estimulado energeticamente, pula de uma órbita para outra, no interior do átomo, ao redor do núcleo de prótons..).

Todo mundo sabe que falar ao celular e dirigir é exemplo — digamos, pedestre — de tragédias anunciadas, infelizmente. Que fazer, a simultaneidade parece atrair as pessoas, assim como as órbitas do átomo aos elétrons energizados. E o que dizer dos «disparos» simultâneos de mensagens nas redes sociais por robôs (bots), com conteúdos de propaganda, isto é, fake news, base política que sustenta capitão e filhotes corolários?

Tive, numa ocasião, um chefe muito arguto, de uma inteligência fora do comum. Sempre admirei sua capacidade de articulação e rapidez de pensamento, o que conseguia conciliar. Certo dia de intenso trabalho, meus colegas e eu presenciávamos sua agitação em meio a várias ações e das providências que tomava ao mesmo tempo, quando repentinamente fez um parêntesis, para comentar em (simultâneo ?) auto-elogio, típico dessas pessoas, que por vezes padecem — em simultâneo? — de superficialidade: — «ser eficiente na linearidade, tratar uma coisa de cada vez, não tem graça, importante é ser eficiente na simultaneidade».

E acrescentou, do alto de sua inteligência: «eu falo por aforismos», querendo significar que era rápido e sintético ao expressar-se.

Admirável. Resta ver a que preço, pois as « verdades» com frequência encapsuladas em aforismos parecem conviver muito bem com distorções ou falsidades — «fake-news», talvez? As religiões, não se saberá bem porque, apreciam bastante esse recurso da expressão. Em todo caso, deixemos os aforismos bíblicos de lado, por mera prudência.

Assim, a simultaneidade pode parecer estar por toda parte, desde tempos imemoriais. Menos na linguagem. E como seres faladores, para nós, humanos, o dilema é grande.

Como referido acima, podemos distinguir, uma tensão na relação entre linearidade e simultaneidade: ficamos angustiados — acho que esta pode ser a grande tragédia individual revelada pela linguística moderna — em não poder expressar pela linguagem tudo o que pensamos simultaneamente, a não ser de maneira linear, por mais complexas, sobrepostas e conexas sejam nossas narrativas. Tirante os poetas, e alguns gigantes contemporâneos da escrita, como James Joyce ou Guimarães Rosa, somente Ionesco talvez terá conseguido isso, nas suas peças, chamadas, sintomaticamente, de teatro do absurdo.

A pessoa que come a sós está livre desse dilema. Um falso dilema, admita-se, para esse indivíduo.

Como, na refeição solitária, por definição o diálogo ou as conversas tendem a ser marginais, ou no máximo, subsidiários, ao contrário de uma refeição convivial, seja de negócios ou entre amigos ou de família, não há porque buscar a simultaneidade.

Há, naturalmente, as exceções típicas, desde aquele que come só, acompanhado do livro ou o jornal, aos que conversam ao telefone ou com o telefone celular e seu mundo virtual. Há de tudo, o papo com o garçon ou com a amiga que encontra, ou com as pessoas da mesa ao lado.

Mas o dilema referido, de não conseguirmos escapar à linearidade, felizmente não se apresenta ao comensal solitário senão também apenas pela margem. Ou fica nos bastidores dessa cena onde quem come só ocupa o centro do palco.

Quem faz uma refeição solitária tem todos os motivos para trabalhar uma única simultaneidade: a da refeição com a reflexão. Seja onde for, debaixo do viaduto, na praça, no parque, no hospital, nas catacumbas romanas, no espaço exterior. E, claro, também em qualquer restaurante (exceto no restaurante «a quilo», essa instituição onde o ato sempre cerimonioso de alimentar-se é levado a distorções ultrajantes , e agora felizmente marginalizada em função dos esforços na luta contra a pandemia da Covid-19).

Mas, nessa simultaneidade do ato de alimentar-se com a reflexão, não há dilema. Ao contrário.

Uma angústia a menos, portanto. Sem desconsiderar as demais, referidas quando sugeri, em outro momento nestes ensaios, a noção de drama na refeição, que quando se faz presente o é em grau muito menor na refeição a sós.

Todos apreciamos a refeição convivial, em família, com amigos, de negócios; e evitamos, na proporção inversa, a refeição solitária. Apenas noto que as refeições gregárias, se permitem o diálogo, o intercâmbio de ideias, a convivência fraterna, íntima, amorosa, esclarecedora e criadora, oferecem, em contraste mais ocasiões de drama ou de tensão, o que é próprio das relações humanas, do que a refeição a sós. Esta, em compensação, tende a deixar-nos livres de uma multiplicidade de eventuais constrangimentos — por exemplo, o de sermos, ou parecermos, «eficientes», «hilários», «inteligentes», «cultos», «liberados», «elegantes», «educados», «sábios», de «convencermos ou de sermos convencidos» — tudo entre aspas, pois, como é obvio, são dilemas falsos. Fake news. Menos o de ter que pagar a conta.

A black baby grand piano/pequeno piano de cauda preto

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Pedro Motta Pinto Coelho
REFEIÇÃO A SÓS

Mineiro, diplomata aposentado, vivo com Cristiane, perto de Lisboa, entre a experiência profissional no exterior e o sentido íntimo da crítica racional. Matuto.